quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

PERDER: VERBO NEFASTO (2002)

A cada porta na cara que recebo, a cada não sinonimizado por palavras consoladoras e suaves, a cada decepção por alguma falha nos planos, a cada descoberta de que você não é tudo aquilo que pensa, me vem o verbo: perder. A cada mulher perfeita que não surge, a cada amigo que se vai, a cada jogo do Botafogo, me vem o verbo. Verbo mau, duro, por vezes camuflado ou fantasiado por ilusões do nosso ego. Perder: ato de derrota. Perder: o mau da vez. Talvez o mais difícil de ser defendido, pelo fato de ter duras relações pessoais com o ato de. Seja em quaisquer dos tempos verbais, conjugá-lo é um gesto de extrema coragem, sinceridade e ousadia (qualidades que raramente me surgem). Portanto, amigos perdedores, poremos o dedo na ferida desde já. E que a derrota nos sirva de lição (como também a vitória, lição muito melhor de ser aprendida).
Perder é duro. É tão duro, que é o mais amplo dos transitivos diretos. Aceita centenas de objetos, inúmeros substantivos. Podemos perder tanta coisa na vida, notaram ? O ônibus das 7:00 às 7:02, a nota de 50 reais que estava no bolso furado, o óculos de 300 que ficou no banco do táxi, a aliança de ouro que o sabonete jogou para o ralo da pia. Perder também pode ser complementado por substantivos abstratos: o amor da sua vida (aquele mesmo, tá lembrando ? Aquele que, por mais velho que você fique, nunca irá esquecer), a euforia dos 17 anos (essa mesma... que te fazia passar horas em claro dançando, sem comer ou dormir, e que te tornava o mais feliz dos seres), a inocência da infância. Podemos preenchê-lo também de detalhes corporais, como os cabelos negros derrotados pelos alvos. Em alguns casos (não o meu, é claro), todos os cabelos podem ser perdidos. O tempo nos faz perder a velocidade, a resistência, a agilidade. Perdemos também as roupas, os sapatos, aquela sunga linda que só entrava em ti há seis anos atrás. Perdemos, às vezes, o orgulho do espelho, o narciso que vivia no lago. Perdemos pessoas que amamos, a pior das perdas. Neste caso, o medo nos faz conjugá-lo no futuro, perdemos então a chance de não pensar em perdas, vivemos para que nunca aconteçam.
Derrotas geram incertezas. Perco toda vez que vejo meu monte de escritos empoeirados nas gavetas, perco sempre que noto que o sucesso é muito difícil. Perder é saber que não foi o suficiente, que faltou capacidade. Perder é não torcer para a Beija-Flor, é não ter visto o pôr do sol na baía de Angra dos Reis. Estou há muito tentando explicar a perda, mas só me vêm o “perder”. Talvez por causa da dor, que anistia a razão de saber perder- grande arte. Talvez pelo ego, pelo orgulho, pela arrogância. Talvez pelo fato de saber que a história é contada pelos que vencem, não pelos que perdem. Podia dizer – se eu fosse um cara politicamente correto – das lições tiradas nas derrotas, da necessidade de aprender a saber perder, do dia novo que virá amanhã. Da possibilidade da virada do jogo, do sucesso sobrepujando o fracasso. Mas, caros amigos, da derrota só tiro a dor. Só tiro a decepção, o desapontamento. Perder, pra mim, é admitir minha pequenez, assumir meus limites. E não há santo que tire isso da minha cabeça.
Caminhando por outros terrenos, talvez isto seja reflexo do mundo ocidental, sempre individualizado e competitivo. Vivemos na lei da selva, precisamos matar pra comer. Perder pode significar o fim, a falência. Creio que em algumas comunidades orientais isso mude de figura, o grupo se sobreponha ao indivíduo, a derrota se torne coletiva. No entanto, não é disso que falo. Deixo os sociólogos e antropólogos cuidarem desta área, prefiro manter-me no verbo, razão das minhas letras nesse papel em branco. Perder, a ação infinitiva. No gerúndio “perdendo” a vida vai. No particípio “perdido”, apenas a lamentação. Até hoje procuro a Playboy da Xuxa que minha avó deu fim há quase vinte anos. Até hoje busco o meu io-io “Super” da Coca-Cola, que garanto ter deixado na gaveta de minha irmã. Até hoje almejo aquela menina que me disse não na hora da música lenta no baile. Até agora vasculho em busca do menino levado que vivia dentro de mim. Tanto perdido ! Aqueles anos sem letras e papel, aquelas noites de brigas e lágrimas. Tanto perdi ! As chances de abraçar os amigos, de tomar aquela geladinha na Sexta-feira. Tanto perdi ! Nos anos de fumaça nos pulmões, nas vezes que deixei de agradecer a quem fez por mim. Pretendo não perder mais tanto, só o suficiente. Pelo menos pra sempre me lembrar que a perda faz parte da vida, é o nosso caminho.
A crônica vai chegando ao fim e minhas perdas aumentam. As duas horas de sono que perdi tentando escrever este texto, o mouse que despedaçou-se no chão, após um de meus atabalhoamentos. Farei o possível pra não voltar a perder com fumaça nos pulmões, mas está difícil ultimamente. Não perderei mais dias felizes com minha filha, e nem perderei meu tempo visitando sites pornográficos. Prometo perder alguns quilos, pois algumas perdas geram boas vitórias. E, obviamente, aproveitar este verão pra perder um pouco a solidão. Claro, pequenas férias, não vivo sem minha parceira de trabalho. Trabalho: pois é, neste caso, perder é ficar sem o que não se tem. É não ganhar, é não ter os seus cem mil livros vendidos. É não ficar ao lado do Jô, não dar entrevistas na TV Educativa. Perder – pra mim – é não ser lido, é ser delatado ao final de casa sessão de email. Então – por piedade – não me derrotem. Me ponham na pastinha amarela do Windows, guardem minhas letras.
Apesar de tantas perdas, acabo de vencer mais uma.
ANDRÉ FAXAS

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